Avançar para o conteúdo principal

POSSO CHORAR?


O luto é sempre doloroso. É uma experiência pessoal única e intransferível. É dolorosa, angustiante e produz imensa dor e sofrimento.
Ele é uma experiência pessoal e é também uma experiência solitária. Ninguém pode viver o meu luto, por mais que amigos e familiares desejem dividi-lo, cada um vive o seu luto de maneira pessoal e intransferível. É lógico que, no processo do luto é bom ter pessoas por perto, mesmo que eu me mostre irritado, distante e sem interesse em nada e muitas vezes sem interesse em nada. “Tudo é tão pouco interessante, no entanto quero que os outros estejam ao meu redor. Tenho horror quando a casa está vazia. Ah, se eles conversassem uns com os outros e não comigo!” É bom que eles estejam aqui, mas a presença das pessoas não substitui a ausência do ser amado que já não se encontra aqui. É por este motivo que se define o luto como o preço que se paga por amar. A perda causa dor, manifesta sofrimento. Ela é vivida na integralidade do meu ser. Todo meu ser sofre. Não é apenas uma reacção emocional.
É verdade, o luto é uma experiência pessoal, única e com contornos particulares que ninguém pode entendê-lo. É claro que, posso ser ajudado no processo, mas sou eu quem tem que vivê-lo e manifestá-lo. É em mim que ele actua e vai invadindo toda minha essência.

Luto uma experiência do ser
Já falamos sobre esta realidade, mas é bom voltar à temática. Ninguém vive o luto apenas no seu mundo emocional. O ser humano não é apenas um ser emocional. Ele é pleno. Ele é um ser constituído na sua essência pelo seu lado físico, mental, social, emocional e espiritual. O luto acontece em todas estas dimensões.
O luto é intenso e atinge o ser holístico. Infelizmente, muitas pessoas por não terem noção desta realidade, pensam que o luto é algo que acontece a nível socio-emotivo, mas isto não é verdade. A vivência do luto é muito mais profunda e vai muito mais além.
Ele é global. É uma experiência do ser e a pessoa sente a perda em todos os níveis de sua existência.

Manifestação do luto a nível físico
Viver o luto no âmbito físico significa passar por modificações. Meu físico reage ao luto que estou vivendo. Sendo assim é muito natural que no primeiro momento apareça soluço, taquicardia, dificuldade em respirar. Também pode acontecer que haja uma secura na boca, falta de apetite, pois quem deseja comer alguma coisa quando o ser amado partiu?
No luto, meu corpo se ressente. Ele também vive o luto intensamente. E assim é normal passar por um período de insónia, ter dores de cabeça, estar inquieto, débil e muitas vezes sem apetite sexual.

Manifestação do luto a nível mental
A mente humana é uma caixa de surpresa. Ela gere sentimentos, processa os pensamentos e lógico que actua nas nossas decisões influenciado assim o nosso comportamento.
A pessoa que enfrenta o luto passa por um processo de transtorno mental que o fará atravessar uma crise em vários níveis a saber:
Falta de concentração. Diante da perda de um ser querido é comum a pessoa não ter capacidade de concentrar-se. Ela tem dificuldade em organizar seus pensamentos, de viver o presente. O processo do luto já pode ter ocorrido algum tempo atrás, mas a pessoa continua presa ao passado. Isto faz com que a pessoa fica sem capacidade de concentrar-se no presente, com dificuldades de assimilar e manter um diálogo com respostas concatenadas.
Utilizando a mentalidade informática, parece que há um bloqueio, onde não se consegue formular informações. Processar coisas novas torna-se incapaz. Parece que o disco está cheio e sendo assim, não há motivos para processar nada novo.
Quem está a viver o luto está num momento de crise. Encontra-se numa encruzilhada e sem capacidade de concentração e com facilidade esquece-se das coisas.

Dificuldade para desenvolver novos projectos. Quem está em processo de luto perde a capacidade de sonhar. Fica sem a capacidade de viver novos projectos. Ela fica presa e por isso, fica sem estabilidade. Isto faz com que ela esteja frustrada e até mesmo em desespero.
A rotina foi quebrada. Há um vazio, um abismo adiante da pessoa e este parece ser intransponível. Ela não consegue concentrar-se e traçar novos projectos, não consegue ver o presente e muito menos o futuro com sentido. É preferível estagnar. E sem esta capacidade de visualizar e levar adiante novos projectos, fica impossível para a pessoa conceber que a vida agora tem uma nova matiz.
O luto paralisa. Ele faz com que a pessoa não fique presa e sem condições de olhar para frente. Ele é uma angustiante prisão que bloqueia a capacidade do ser humano de desenvolver novos projectos e sonhar com dias melhores.

O desejo de encontrar a pessoa que faleceu. A pessoa que está em luto deseja ardentemente a volta da pessoa que partiu. Sendo assim, desenvolve-se a busca pelo ser querido que partiu. Sua presença pode ser notada muitas vezes por objectos e fotos, pela sua cadeira preferida.
Esta busca faz com que, em muitas situações a pessoa possa vir a desenvolver alucinações onde passa sentir a presença do ser querido.
É comum também tentar encontrar a pessoa querida através dos sonhos. A pessoa que está vivendo o luto busca pelo seu ser querido. Quer tê-lo de volta. Há pessoas que se dirigem ao cemitério e ficam horas a conversar em frente à sepultura do ser querido e em sua mente obtém respostas. Em sua mente, há um diálogo normal como se nada tivesse acontecido.

Manifestação do luto a nível espiritual
O ser humano é muito mais que matéria. Ele é um ser pleno. Sendo assim, ele também é um ser espiritual. O ser humano é indivisível. Sendo assim, a parte espiritual é uma constante.
É lógico que há aqueles que não acreditam e por isso, desprezam esta vertente, pensando que a vida é apenas este momento fugas que vivemos aqui e quando acontece a morte, tudo termina. Entretanto, há aqueles que olham para a vida com mais profundidade. Há aqueles que entendem que o ser humano é também um ser espiritual.
É lógico que o património espiritual de uma pessoa é forjado pelos seus valores humanos e da fé que professa e que há integrado em si e que foram transmitidos por sua família e comunidade. O que acontece é que muitas vezes, quando acontece a morte, se a pessoa não tem uma fé consubstanciada, firme esta entra em crise, mas há outros casos em que o acontecimento da morte serve para fortalecer e aprofundar a fé que a pessoa vive.
Dentro da realidade espiritual descortinam-se os seguintes cenários:
O reconhecimento da própria finitude. É algo interessante, pois o ser humano só pensa na sua limitação diante da morte. É olhando para a morte que ele pensa na vida. É ao contemplá-la que reconhece sua fragilidade e brevidade. É neste momento que ele percebe quão vulnerável e frágil é.
É neste momento duro que o ser humano contempla sua finitude e reflecte sobre o sentido da vida.

A falsa ideia da imortalidade. Com isto não estou afirmando que quando ocorre a morte, tudo termina. Não é isto. O que estou afirmando é que não existe aquele conceito dos contos de fadas: “e viveram felizes para sempre”. Isto é fantasia.
Nós somos seres mortais. Precisamos compreender esse processo de finitude. É verdade que como diz Gonzaguinha, ninguém quer a morte, só saúde e sorte. Todos nós desejamos ter mais um dia.
O facto é que negamos a realidade, fugimos da única certeza que trazemos na vida e que por mais que tentemos negar é algo que faz parte do processo da existência. A morte chega a todos, mas como tentamos enganá-la e fugir dela, vamos protelando e deixando para o dia de amanhã o que podemos fazer hoje.

Onde está Deus nesta hora? Quando a tragédia bate à nossa porta a primeira coisa que fazemos é perguntar porque? Se Deus é bom, como pode permitir que isto aconteça?
Neste momento surgem todos os questionamentos possíveis e imagináveis.
Diante destes questionamentos é bom reflectir no que escreve C.S. Lewis:
“Enquanto isso, onde está Deus? Esse é um dos sintomas mais inquietantes. Quando você está feliz, muito feliz, não faz nenhuma ideia de vir necessitar dEle, tão feliz, que se vê tentado a sentir suas reivindicações como uma interrupção; se se lembrar e voltar a Ele com gratidão e louvor, você será – ou assim parece – recebido de braços abertos. Mas volte-se para Ele, quando estiver em grande necessidade, quando toda outra forma de amparo for inútil, e o que você encontrará? Uma porta fechada na sua cara, ao som do ferrolho sendo passado duas vezes pelo lado de dentro. Depois disso, silêncio. Bem que você poderia dar as costas e ir embora. Quanto mais espera, mas enfático o silêncio se torna.”
Na hora da dor, em meio aos questionamentos, Deus parece ficar calado. Ele não nos responde. Parece que ele está escondido. Não o encontramos. Entretanto, se tão-somente confiarmos e expressarmos nossa raiva e dor, mas também nossas perguntas, escutaremos a resposta em meu à nossa dor: “Estou aqui contigo!” É isto que diz o caminhante do salmo 23: “Mesmo quando eu andar num vale de trevas e morte, não temerei perigo algum, pois tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me protegem.” (Sl 23.4).
Este é um momento crucial de amadurecimento da fé. No questionamento sincero, poderemos ouvir Deus a falar connosco.
Ele é o Deus encarnado, que se chama Emanuel (Deus connosco), que veio para levar nossas dores e enfermidades. Veio e assumiu tudo por nós e prometeu que está connosco todos os dias até o fim do mundo (Mt 28.20).

Qual é o sentido da vida? O luto não apenas nos rouba alguém que amamos. Ele rouba-nos o sentido da vida. E quando perdemos a pessoa amada surgem-nos a perguntas: E agora, o que fazer? Que rumo dar à vida?
A pessoa que está em luta vive isolada, em solidão e com isso, pode desenvolver naturalmente uma depressão. Ela fica sem um sentido de vida e com isso acaba por distanciar-se da própria vida. Sendo assim, é importante que a pessoa ame, porque o amor dá sentido a vida.

Manifestação do luto a nível social
O luto é uma experiência individual. Cada um o vive de maneira diferente. Entretanto, ele também torna-se uma experiência social, aqui encontramos o ritual que é celebrado, a vida que se mantém com os amigos, o trabalho que continua a ser desenvolvido.
O luto atinge toda a comunidade. Sendo assim, os que estão em luto desenvolvem algumas características e atitudes em relação aos que estão à sua volta tais como:
Encarceramento pessoal. Pessoas que enfrentam o luto costumam se isolar. Fecham-se no seu próprio mundo. No seu sofrimento, na sua dor e vulnerabilidade trancam-se. Fecham-se para o mundo. Algumas ficam fechadas em casa sem desejar fazer nada.
Infelizmente, em alguns casos é a própria sociedade que alimenta esta atitude e exige da pessoa uma atitude de isolamento e afastamento do grupo.

Inveja dos outros. A pessoa que está atravessando o luto não concebe olhar para os outros e ver que suas vidas seguem na normalidade. Como pode ser que ele vive o vazio e os outros continuam com tudo na normalidade.
A pessoa pode ter inveja e ciúme dos casais que seguem sua vida na normalidade. Isto acontece por causa da sua solidão.

Oportunidade de crescimento e mudança. O luto causa dor. Ele vem acompanhado com o sofrimento. Mas também ele traz consigo a oportunidade do crescimento e da mudança.
Quem enfrenta o luto terá que aprender a adaptar-se à uma nova situação. Terá que aprender a fazer coisas que antes não fazia. Sendo assim, o luto é um processo de dor, mas também de crescimento e de mudança na vida para uma nova fase que surge e manifesta-se na vida da pessoa como oportunidade.

Manifestação do luto a nível emocional
O ser humano é uma caixa de surpresa. E é no âmbito emocional que surgem uma gama de situações que são vividas e expressadas de modo intenso.
Cada um de per si poderá manifestar diferentes tipos de reacções. Sem discorrer sobre nenhuma delas, vou apenas enumera-las para que possamos saber que estas atitudes são frequentes e que fazem parte do processo do luto.
Shock, medo, incredulidade, afastamento, raiva, sentimento de culpa, depressão, tristeza e por último alívio.
O grande problema é que nossa sociedade não sabe lidar com as emoções. Não queremos ver ninguém triste. Não desejamos ver a dor dos outros. Sendo assim, quando alguém tem que enfrentar seu processo de luto, a primeira coisa que nos ocorre é dar-lhe um calmante. Nossa tendência natural é fazer com que a pessoa não expresse reacções, não expresse suas dores e emoções.
Somos seres emocionais. Não podemos passar sem nossas emoções. Sendo assim, é essencial dar lugar a elas no período de luto. Precisamos permitir que as pessoas manifestem suas emoções.
É normal vermos em cerimónias fúnebres pessoas à volta do enlutado e ouvi-los dizer sempre a mesma coisa. “Não chore”. Espero poder ouvir um dia alguém dizer bem alto. Posso chorar. Deixem-me expressar minha tristeza, a minha dor. Eu estou sofrendo e esta a maneira normal de manifestar minhas emoções. Fiquem quietos e deixem-me chorar.

Guisa de conclusão
A perda de alguém é sempre dolorosa.
Ela mexe com todo o ser. Ela afecta a comunidade.
O que está no processo do luto irá reagir de modo holístico. Entretanto, é fundamental que os que estão à sua volta percebam que ele necessita expressar suas emoções para que possa viver o luto de modo saudável. Sendo assim, em vez de oferecer calmantes, em vez de tentar esconder a dor que a pessoa está a passar, respondamos ao seu clamor silencioso que diz: “Posso chorar?”
Que possamos nos cercar à pessoa enlutada e ofereçamos um ombro amigo e digamos, estou aqui e desejar chorar que estar ao seu lado.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

APENAS O EVANGELHO E NADA MAIS QUE O EVANGELHO

José Régio tem um poema que me revejo cada vez mais nele. “Não vou por aí”. Confesso que esta é a declaração que faço para alguns que se dizem líderes religiosos, mas que não passam de comerciantes da fé. É impressionante o marketing que é feito e como há gente que aceita e segue os que se apresentam com títulos, ou até mesmo, que rasgaram o título e desejam apenas ser tratados por seus próprios nomes. Não vou por aí. Não sigo ideias malucas e promessas de prosperidade, onde apenas os líderes enriquecem, e o simples membro continua com sua vida regrada, apertada, para não dizer com a corda no pescoço. Não dá para seguir quem promete bênçãos e vende a fé e viaja em jato privado que está no nome da igreja ou de uma instituição, mas o membro comum não tem o direito de sequer entrar no tal avião que afinal, é da instituição que ele é membro e sendo assim, também um dos que tem direito de usufruir de tal bem. Não vou por aí e não tem como ir. Não dá para seguir líderes que tentam de

Aprendendo com as Mulheres

A igreja é um projecto divino. É um projecto unificador. Nele todos somos iguais, pois como afirmou Paulo: “Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus.”(Gl 3.28). A igreja que vive esta realidade está disposta a aprender com todos os seus irmãos. Está disposta a valorizar os dons que o Senhor concedeu a determinado irmão para a edificação do corpo, sem importar se este é homem ou mulher. Tenho consciência que estou numa igreja assim, uma igreja que valoriza tudo e a todos sem fazer distinção se é homem ou mulher. Sendo assim, quero partilhar as lições que tenho aprendido com as mulheres, tanto na igreja como na Bíblia. No dia-a-dia, aprendo com as mulheres o facto de parar para estar aos pés do Senhor Jesus. É impressionante olhar para a Bíblia, principalmente no Novo Testamento, e ver as mulheres que se prostraram aos pés de Jesus. Elas pararam para adorá-Lo e para ouvirem os seus ensinamentos. Elas apenas queria

COMO DESTRUIR OS FILHOS

Filhos são um desafio. Eles são o grande investimento que alguém pode fazer. São a nossa continuidade e extensão do nosso ser. Filhos são um projeto de vida e para toda vida. O poeta Vinícius de Moraes escreveu: “Filhos... Filhos? Melhor não tê-los! Mas se não os temos Como sabê-los? Se não os temos Que de consulta Quanto silêncio Como os queremos!” [1] Filhos são desejados, sonhados e amados. Filhos são o maior investimento que podemos fazer, mas filhos são um desafio para cada um de nós. Pensando no poema de Vinícius vejo as declarações de Bauman (Bauman, 2006) que diz: “Os filhos estão entre as aquisições mais caras que o consumidor médio pode fazer ao longo de toda a sua vida. (…) ter filhos é, na nossa época, uma questão de decisão, não um acidente - o que aumenta   a ansiedade. Tê-los ou não é, comprovadamente, a decisão de maior alcance e com maiores consequências que existe e, portanto, também a mais angustiante e stressante. Ter filhos significa avali